- Yehudi Menuhin, um dos maiores violinistas do s�culo, era tamb�m personagem excepcional
Veja, 1999-03-21
Conheci Yehudi Menuhin, um dos maiores violinistas do s�culo, durante a d�cada de 70. Na �poca, a provid�ncia fez com que se esgotassem as entradas para seu concerto em Genebra, do qual participavam tamb�m o violoncelista Pierre Fournier e a soprano Elizabeth Schwarzkopf, acompanhados ao piano pelo russo Nikita Magaloff. Ap�s importunar meio mundo genebrino, consegui o melhor lugar do teatro: ao lado do pianista, como... virador de p�ginas! Como b�nus, eu poderia presenciar o ensaio. Vestindo minha �nica boa roupa, rumei, de �nibus, ao mundo m�gico das capas de LPs. O sonho de testemunhar a intimidade dos deuses, nos bastidores do Olimpo, era real. Fournier foi o primeiro a ensaiar. Tocou mal e me ignorou. A seguir, foi a vez da diva Schwarzkopf, que, apesar de nem sequer dizer bom-dia, cantou como um anjo. Quando voltei do intervalo, tremi ao ver que Menuhin j� havia come�ado. Percebendo minha presen�a, ele interrompeu a m�sica e veio em minha dire��o. "Serei expulso por estar atrasado", pensei. "Acho que n�o fomos apresentados. Muito prazer, sou Yehudi Menuhin", tranq�ilizou-me ele, com um sorriso iluminado.
Americano naturalizado ingl�s, Menuhin, que morreu na semana retrasada, aos 82 anos, era espiritual e provocativo, judeu e seguidor do misticismo indiano. Defensor da ecologia, chegou a ser propriet�rio de uma loja de alimentos naturais. Tocou com Ravi Shankar, o mestre da c�tara, era f� dos Beatles e odiava os Rolling Stones. Em 1945 apresentou-se para sobreviventes do holocausto. "Enquanto viver, jamais esquecerei aquela tarde", contou, emocionado, ao descrever a plat�ia lotada de "esqueletos incr�dulos, mas ainda vivos". Em 1947 despertou a ira de seu pr�prio povo, ao se apresentar na Alemanha com o regente Wilhelm Furtw�ngler, injustamente associado ao nazismo. Em 1950, apesar das amea�as de morte, tocou em Israel. A lua-de-mel durou pouco. Depois de realizar concertos em benef�cio da causa palestina, Menuhin foi acusado de ser anti-semita, respondendo, com humor, que "se eu o fosse, me suicidava". Achava que podia consertar o mundo. Uma vez, pediu-me uma folha de papel em branco. "Tive uma boa id�ia para solucionar a crise na Irlanda do Norte", explicou candidamente, como se se tratasse de algo simples como tocar uma escala. No final dos anos 40 enveredou tamb�m pelo caminho da reg�ncia, atividade que desenvolveu at� o final da vida.
Crian�a levada � Em 1990, ensai�vamos na Su��a com a Royal Philharmonic Orchestra, quando houve um desencontro entre orquestra e piano. Menuhin interrompeu imediatamente e, antes que dissesse alguma coisa, um violoncelista mal-humorado gritou: "Maestro, n�s tocar�amos melhor se o senhor n�o regesse esse trecho", como se Menuhin fosse o respons�vel pelo erro da orquestra. Num caso desses, ou o maestro vai embora ou o m�sico � expulso. Com um sorriso, Menuhin respondeu: "Senhores, estou velho, mas n�o t�o velho que n�o possa ainda aprender. Por que n�o tentamos a sugest�o do nosso colega?" Com o maestro im�vel, tocamos sem problemas a mesma seq��ncia e Menuhin, dirigindo-se ao m�sico atrevido, disparou: "Por favor, n�o hesite em interromper novamente, caso o senhor tenha outra id�ia t�o genial quanto essa". Ao tocarmos aquele trecho durante o concerto, Menuhin virou-se para mim e, como uma crian�a levada, piscou um olho.
Ele foi a pessoa mais generosa que conheci. Afetuosamente, disse-me que o fato de termos nascido no mesmo dia, 22 de abril, n�o era simples coincid�ncia. Respondi, perguntando se o mesmo se aplicava a Lenin e ao Brasil, que comemoram o anivers�rio na mesma data. Ainda ou�o sua sonora gargalhada. Quando lembro de lorde Menuhin, penso que a ra�a humana � uma experi�ncia que ainda pode dar certo.