Artigo
Rach versus Rach
- O pianista Rachmaninoff n�o respeita a partitura do compositor Rachmaninoff
Veja, 2000-02-05
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Filho de pai alco�latra e m�e rica, Sergei Vasilyevich Rachmaninoff (1873-1943) viu, aos 9 anos, o pai abandonar a fam�lia depois de dilapidar seu patrim�nio. O talento musical do menino Sergei, descoberto por um primo musicista, n�o deu frutos imediatos. Foi reprovado em todas as mat�rias no Conservat�rio de M�sica de S�o Petersburgo e, por isso, enviado a Moscou, onde moraria e estudaria com o severo professor Nikolai Zvere. "A t�cnica deve ser a primeira aquisi��o de um pianista", disse Rachmaninoff anos mais tarde. Graduou-se em piano e composi��o no Conservat�rio de Moscou e, aos 18 anos, j� havia escrito o Concerto N� 1 para Piano e Orquestra. Aos 19, recebeu a medalha de ouro por sua �pera Aleko, baseada em um poema de Alexander Pushkin. � tamb�m dessa �poca o conhecido Prel�dio em D� Sustenido Menor, pe�a que o consagrou mundialmente. "Recebi 20 d�lares pelo Prel�dio e nunca mais vi nem sequer um tost�o", reclamou o compositor.
Rachmaninoff caiu em profunda depress�o depois do fracasso de sua Sinfonia N� 1. Tratou-se com o doutor Nikolai Dahl, um hipnotizador que o bombardeou durante meses com frases do tipo "sua m�sica � bela", "voc� � um �timo pianista" etc. Com a esperan�a recuperada, produziu a obra que viria a se tornar uma de suas marcas registradas, o Concerto N� 2 para Piano e Orquestra. Dedicada a seu salvador, a pe�a teve um sucesso estrondoso. "Pode parecer incr�vel, mas o tratamento com o doutor Dahl foi fundamental para que novas id�ias musicais brotassem de minha alma."
Teclado mudo - Para sua primeira turn� nos Estados Unidos, Rachmaninoff comp�s o c�lebre Concerto N� 3, um dos mais dif�ceis de toda a literatura pian�stica do s�culo XX. Teve de estud�-lo num teclado mudo, a bordo do navio que o levou � Am�rica. A estr�ia aconteceu em 28 de outubro de 1909, no New Theatre, em Nova York. Recebido de bra�os abertos pelos americanos, Rachmaninoff repetiu a dose tr�s meses depois, dessa vez no Carnegie Hall e como solista da Filarm�nica de Nova York, regida pelo compositor Gustav Mahler.
Com a Revolu��o de 1917, Rachmaninoff decidiu morar definitivamente, com a fam�lia, nos Estados Unidos, impondo-se um auto-ex�lio que duraria at� o fim de sua vida. Falava ingl�s com dificuldade e, por isso, foi reprovado no exame para motorista. Com o dinheiro ganho nas lucrativas turn�s, fundou uma editora de partituras musicais em Paris e construiu uma bela vila em Lucerna, na Su��a. Foi l� que, em 1934, concluiu uma de suas obras-primas, a Raps�dia sobre um Tema de Paganini, inspirada em um dos caprichos para violino solo do virtuose italiano e considerada genial pela cr�tica. O Concerto N� 4, de 1941, � o menos popular entre os concertos. Mal recebido na estr�ia, reavivou pesadelos antigos do compositor. "N�o fa�o esfor�o para ser original ou rom�ntico", defendeu-se. Apesar de a maioria das obras de Rachmaninoff ter sido produzida no s�culo XX, sua linguagem musical n�o esconde o forte sotaque do idioma rom�ntico do s�culo XIX. N�o � � toa que sua m�sica tem sido utilizada at� em trilha sonora de filmes �gua-com-a��car, como Em Algum Lugar do Passado.
As grava��es que agora chegam ao Brasil s�o especialmente fascinantes por mostrar o compositor interpretando suas pr�prias obras, mas geram algumas perguntas sem resposta. Por que o Rachmaninoff int�rprete nem sempre respeita o que o Rachmaninoff compositor escreveu? Ser� que, por ser o pai da crian�a, ele pode? S� ele? O que outros compositores diriam? Um paradoxo, discutido no meio musical, diz respeito � paix�o contida nas partituras de Rachmaninoff, mas n�o expl�cita em suas interpreta��es. Como pode a mesma pessoa ser um compositor passional e um int�rprete contido? Uma explica��o plaus�vel � que as atitudes de um compositor e as de um int�rprete s�o diferentes. Ao compor, o artista n�o precisa expor-se fisicamente. Para o int�rprete, a imprevisibilidade reina absoluta. O performer n�o goza de privacidade, depende de bem-estar f�sico e mental, al�m de torcer para que a inspira��o n�o falte ao encontro marcado.
Nesses CDs da gravadora Naxos, o pianista, com suas m�os imensas, que alcan�avam treze teclas de uma s� vez - grandalh�o, era descrito por colegas como "um metro e noventa de melancolia russa" -, d� uma aula magistral de t�cnica e m�sica. O processo de grava��o dos anos 30, ao contr�rio do de hoje, n�o permitia edi��o, o que nos d� a possibilidade de ouvir o verdadeiro Rachmaninoff, acompanhado pela �tima Orquestra de Filad�lfia, regida, em faixas diferentes, por Leopold Stokowski e Eugene Ormandy.
"A m�sica � suficiente para toda uma vida, mas uma vida n�o � suficiente para toda a m�sica", disse Sergei Rachmaninoff. O artista morreu sem saber que o governo sovi�tico lhe havia concedido salvo-conduto para rever sua velha R�ssia.