- Concursos de piano s�o como a Copa do Mundo: firmam reputa��es, mas �s vezes o juiz rouba
Veja, 1998-09-09
Todos os anos, 3.000 jovens pianistas do mundo inteiro lutam por um lugar ao sol. Num mercado em que a oferta � maior do que a procura, a sele��o torna-se inevit�vel, fazendo crescer a ind�stria de concursos de piano. Entre os mais prestigiados figura o Busoni, que est� em andamento na It�lia. No total, s�o 400 certames internacionais que envolvem a participa��o de mais de 700 jurados e criam o cobi�ad�ssimo campo do "judici�rio musical". O primeiro concurso internacional de piano nasceu em S�o Petersburgo em 1890. Foi dedicado ao lend�rio russo Anton Rubinstein e era aberto somente a concorrentes do sexo masculino. A hist�ria mostra que nem sempre vence o melhor. O pianista Ferruccio Busoni, por exemplo, que d� nome ao evento que ora se realiza, foi eliminado dessa primeira competi��o. Vinte anos depois, foi a vez de o polon�s Arthur Rubinstein voltar para casa de m�os vazias. Em 1938, o fenomenal Arturo Benedetti Michelangeli foi agraciado com um modesto s�timo lugar no Concurso Ysa�e, em Bruxelas. Fez-se justi�a no ano seguinte, quando ele venceu de maneira espetacular o Concurso de Genebra, uma competi��o que, em sua fase eliminat�ria, obriga os pianistas a tocar atr�s de uma cortina, para que n�o possam ser identificados. Ap�s a prova de Michelangeli e contrariando o regulamento, o jurado Alfred Cortot abriu a cortina e declarou: "Senhores, eis o novo Franz Liszt!"
Esses certames musicais tamb�m foram afetados pela Guerra Fria. O Concurso Tchaikovsky, realizado em Moscou, foi "desenhado" em 1958 para demonstrar a supremacia cultural da Uni�o Sovi�tica. Com o favoritismo do americano Van Cliburn, os sovi�ticos entraram em p�nico e Nikita Kruschev teve de ser consultado. O premi� acabou dando o seu aval � vit�ria de Van Cliburn, e o "americano que venceu os russos" ganhou o direito de desfilar em carro aberto na Quinta Avenida, em Nova York. No dia seguinte, o sonho de qualquer estudante de piano era vencer em Moscou, mas a "superioridade" sovi�tica j� tinha sido restabelecida. O professor ingl�s James Gibb conta que, quando foi jurado, em 1990, recebeu o pedido de uma autoridade para que ouvisse um aluno do conservat�rio local. Por uma hora de aula, recebeu 1.000 d�lares em envelope lacrado. "Devolvi e denunciei o caso", comentou Gibb ao descobrir que o rapaz era candidato. Com o desabamento da Cortina de Ferro, a pol�tica cedeu lugar � corrup��o sem idealismo. Em julho deste ano, "Concerto para m�fia e orquestra" foi a manchete do jornal moscovita Cosmopolitan ao revelar "um n�vel de corrup��o jamais atingido nos quarenta anos de hist�ria da competi��o". O acusado pela maracutaia musical � o professor e mandachuva do evento, Sergei Dorensky. "A m�fia sabe o que faz", continua o jornal, referindo-se ao resultado claramente manipulado por ju�zes e amigos de Dorensky. Dois de seus alunos receberam os primeiros lugares e, ao favorito da cr�tica e do p�blico, o ingl�s Freddy Kempf, de 21 anos, restou a ova��o da plat�ia e um minguado terceiro lugar.
Cinco d�cimos � Julgar pode ser compensador. A remunera��o de um juiz chega a 8.000 d�lares, al�m de ter todas as despesas pagas. Neste ano, o professor italiano Marcello Abbado, um dos protagonistas da epop�ia russa, dever� entrar para o Guinness Book com o recorde absoluto de 101 j�ris. Ser "jurado profissional" significa tamb�m viajar, capitalizar prest�gio e economizar em contas de luz e supermercado. "Se voc� me convidar para o seu concurso, eu convido voc� para o meu" ou "vote no meu aluno, que eu voto no seu" s�o frases habitualmente ouvidas nos bastidores. Por isso, a import�ncia de um primeiro pr�mio � sempre proporcional � qualidade e � integridade daqueles que o outorgam. � gra�as a jurados competentes que o mundo pode ouvir pianistas do calibre de Martha Argerich e Kristian Zimmerman.
Os eventos duram de duas a tr�s semanas, consistem normalmente em quatro provas e recebem centenas de inscri��es. Os participantes, com idade entre 16 e 32 anos, tocam obras de um ou v�rios compositores e os finalistas podem receber, al�m de concertos, at� 20.000 d�lares. O russo Igor Kamenz det�m a marca mundial de 32 pr�mios em 83 competi��es. Na realidade, um concurso � somente uma vitrine. Como disse a pianista Guiomar Novaes, "o mais dif�cil n�o � conquistar o cetro e a coroa, e sim carreg�-los". Talento, preparo acad�mico e t�cnica s�o pr�-requisitos fundamentais para o sucesso. Al�m de "sorte, sorte e sorte", dizia o pianista Arthur Rubinstein. Foi o que faltou ao brasileiro Arthur Moreira Lima em 1965. O talentoso pianista era o grande favorito do Concurso Chopin, em Vars�via, mas teve a infelicidade de ter como concorrente a genial Martha Argerich. N�o ganhou por uma diferen�a de somente cinco d�cimos. Num concerto, o artista tem de dar o seu melhor e, num certame, tocar melhor do que os outros. Como no esporte, o sucesso depende da sa�de f�sica e mental. Sem falar na inspira��o com hora marcada. Ronaldinho que o diga. Ainda bem que a temperatura emocional de um povo n�o depende da performance de um pianista.